A ROTINA TEM SEU ENCANTO
Crítica de O Dia Que Te Conheci
por Felipe Vignoli
26.09.2024, 18h30
O cinema parte de um pressuposto de registro. Eternizar a memória, a imagem, a partir da realidade moldar uma lembrança. Desde os irmãos Lumiére buscamos esse sentido nesse formato de arte, registrar uma fabrica, um trem, ou até momentos chave de nossas vidas, um divórcio, um nascimento, uma morte. Um primeiro amor.
André Novais é um cineasta que constantemente se apega às correntes do realismo. Assumidamente apreciador do trabalho de Yasujiro Ozu, Novais busca contar histórias do seu próprio cotidiano, seu bairro, sua cidade, e assim muitas vezes buscando uma poesia em sua rotina. Ela Volta Na Quinta (2015) seu primeiro longa-metragem, retrata a história de sua própria família, filmada de uma maneira quase documental mas totalmente ficcionalizada, destacando diversas semelhanças narrativas para com as narrativas melodramáticas caseiras de Ozu. É interessante perceber como Ozu e Novais buscam estratégias visuais semelhantes, porém, com sentidos diferentes. O que para Ozu serve como uma pausa reflexiva, para Novais serve como um comentário social sobre seu território periférico. O olhar tanto do cineasta mineiro quanto do japonês busca os pequenos acontecimentos, os dramas familiares, as picuinhas caseiras, os diálogos. Os dois utilizam de objetos do cotidiano em vários momentos chaves, os famosos "pillow shot", registrando aqueles momentos pelo seu espaço íntimo, como objetos que testemunham a cena que está a acontecer.
O Dia Que Te Conheci parte desse mesmo espaço. O filme abre com um plano fixo da prateleira de Zeca, o protagonista, que tem um grande problema em acordar cedo para ir trabalhar. Aqueles objetos testemunham os dramas que vive o rapaz, ali, constantemente incapaz de acordar. Na sequência Zeca encontra o seu companheiro de casa e o implora para acordá-lo no dia seguinte mais cedo, mesmo que ele implore o contrário. Novais tem um senso de humor sutil e delicado, baseado no diálogo descontraído e natural, a insistência de Zeca com o amigo em acordá-lo beira o absurdo, mas depois prova-se fazer sentido. No dia seguinte, mesmo com a insistência de seu amigo, ele não consegue acordar no horário e vai novamente atrasado ao trabalho. A comédia de erros continua e acompanhamos esse trajeto de Zeca de maneira em quase tempo real, o ônibus quebra, o pastel demora a ficar pronto. Tudo parece conspirar contra ele.
Em seu trabalho Ozu e Novais se encontram mais uma vez, o melodrama clássico, a dificuldade financeira. O atraso o faz perder seu emprego e o rapaz é demitido. Aqui o filme toma um rumo inesperado e se inicia a narrativa principal da obra, o melodrama se esvai rumo a uma comédia romântica. Zeca após sua demissão aceita uma carona de volta para o centro da cidade com Luísa, justamente a sua chefe que o demitiu, mas ainda gosta de sua companhia. No caminho os dois se mostram vítimas do mesmo sistema, são explorados, cansados dessa rotina de trabalho. Decidem ir a um bar. Se abrem, se conectam, percebem que partem desse mesmo cansaço e desgaste. O diálogo muito bem pontuado e interpretado pelos atores caminha pelo cotidiano do diretor, sobre as questões sociais atuais, sobre o uso exagerado de remédios e antidepressivos. As conversas dos dois fazem juz a Linklater e seus hangout movies, ou Hong Sang-soo e suas obras focadas no diálogo e o desenvolvimento de seus personagens a partir de tal repetição. Vivemos em uma sociedade doente, que corrói nossas cabeças pelo cansaço e Zeca e Luísa são um produto disso. No caminho do bar a cidade parece vazia, como se caminhassem rumo a um escape desse purgatório do capitalismo tardio. Se encontram um no outro e no diálogo. Nas pequenas coisas. No copo de cerveja. Na cidade. Tão focado em destacar esse espaço do centro de Belo Horizonte, Novais aponta aquele espaço a quem também o vive, já andou por ali, já sentiu a solidão daquelas ruas e ao mesmo tempo seu acalento. Claro, é uma experiência universal, mas que tem um adocicado maior de quem viveu por ali, o jeitinho mineiro trazendo o humor dos personagens, o copo de cerveja na rua, tudo vem do real.
Como desculpa para ir a sua casa, Zeca diz que lhe mostrará suas receitas de remédio controlado. Para compararem, trocarem dores.
Lá, o respiro toma cama, se aconchega. O romance se aflora, os dois se conectam e se juntam como novos corpos, como se fosse um a cura do outro. Tinham de se conhecer naquele dia, naquele momento. Ela percebe que o rapaz toma o remédio no horário errado, isso lhe causa um sono exacerbado, na hora errada. Agora vai dar certo, as coisas voltam a se encaixar. A vida tinha de lhe dar um respiro e o cotidiano vem de pequenos momentos, de respiros.
A grandiosidade desse momento na vida dos dois é o que faz essa obra tão especial. Aquele dia tão ruim e cansativo como qualquer outro tem que ter algo de destaque, um brilho de amor, tão necessário no mundo em que vivemos.
Plantas regadas, xícaras trocadas, azulejos coloridos. Aquele espaço é rodeado de objetos que Novais destaca a presenciarem tudo isso. Os pillow shots de Ozu. Testemunhas daquele micro espaço em que algo mesmo que rotineiro possa parecer e ser grandioso. Um amor começando.
A noite passa, os dois transam. Enfim, na manhã seguinte, Zeca acorda no amanhecer, bem cedinho. Vai até a padaria para comprar um cafézinho e um pão para acordar Luísa bem. No caminho tropeça e machuca seu pé. Dói demais. Mais um percalço, mas não importa. Se conheceram já. Passou aquele cansaço eterno.
O Dia Que Te Conheci
2024 Comédia/Romance
DIREÇÃO: Andre Novais de Oliveira
ROTEIRO: Andre Novais de Oliveira
ELENCO: Renato Novaes, Grace Passo, Norberto Novais.