LEMBRANÇAS EM UM PAÍS DE ESQUECIDOS
Crítica de Ainda Estou Aqui
por Felipe Vignoli
08.11.2024, 13h30
Como se lembrar de alguém em um país com tantos esquecidos? Vivemos em um país de luto, constantemente sendo lembrados do evento tão recente em nossa história que marca eternamente o ápice da brutalidade corruptiva do poder concentrado e da ignorância. É inegável que as sequelas da ditadura militar que assolou o país por mais de vinte anos vivem fortemente na nossa sociedade, é nos nossos pais, avós e bisavós que viveram o período com mais maturidade e guardam essa não-memória consigo. Não-memória porque lidamos dessa maneira fria de não recordar da ferida, talvez para não doer mais. Lembrar dói. Esquecer é impossível. Ficamos aí nesse meio termo.
Desse raciocínio que parte a temática de Ainda Estou Aqui (2024) de Walter Salles. Foram diversas obras de ficção nacionais que buscam retratar esse período da história do Brasil, muitas apontam a tragédia, a brutalidade, violência e melancolia brutal que ocorreu. Muitas vezes de forma direta, contando sobre figuras políticas icônicas e perseguidas, ou vítimas inocentes pegas no meio da perseguição. Walter Salles foge dessa frontalidade narrativa e aponta uma figura secundária a essa tragédia, porém tão impactada tanto, são as pessoas que restaram, que de fato ainda estão aqui.
A obra busca referência na ausência, um filme sobre lembrar enquanto tentamos não afirmar a tragédia. A escuridão que aos poucos consome a casa dos Paiva, família que a trama acompanha.
Rubens Paiva é uma figura presente em toda a tela nos primeiros momentos do filme, Selton Mello entrega um personagem genuíno dessa figura real, que é tão real com aquele espaço que o filme o trata inicialmente como o carismático protagonista. Junto dele, ali meio que de lado se encontra Eunice, a discreta e verdadeira personagem principal. Em meio ao dia a dia acompanhamos no plano de fundo de tudo os desdobramentos da brutalidade policial, são relances de um perigo social iminente, que Salles decide deixar em paralelo da vida comum e alegre da família Paiva. A complexidade dos filhos, seus sonhos, desejos e a paixão deles com aquela casa.
Quando de fato Rubens é preso, o filme se foca em Eunice e sua resiliência familiar, mesmo confusa e sem entender o que se passa de verdade, busca sempre a proteção de sua família. Manter suas inocências daquele mundo violento. A longa cena que acompanha a noite e o primeiro dia em que Rubens desaparece é filmada com uma tensão e obscuridade que causa uma estranheza na falta daquela figura ali. Ele faz falta física. A luz aos poucos dá lugar às sombras, e ali se sente um luto visual. É muito precisa a técnica casual de Salles em apontar essa ausência, a própria casa parece perder algo.
A sequência em que a própria Eunice e sua filha são presas só abrem essa ferida. Nunca temos pistas e vislumbres de Rubens ali. A ferida só vai aumentando. Eunice não sofre diretamente nada que não seja a ausência de seu marido ou qualquer informação dele. A tortura psicologica.
Essa sensação percorre todo o resto da obra, ponto principal que Salles busca. Aquele ferida que não estanca, não tem resposta, não tem solução. Os dias passam. Os meses passam. Os anos passam. A casa fica. Eles vão.
Eunice é essa figura que representa tantos brasileiros e brasileiras que simplesmente foram obrigados a seguir em frente sem nem entender o porquê, o engolir o choro. Essa dor, nunca é vista de forma melodramática nem quando ela descobre a morte do marido, sem corpo, nem quando decidem mudar de cidade. Aquele lugar com tanta dor contida nas paredes. Décadas passam e Eunice luta com as próprias mãos e do próprio jeito. A ferida de Eunice fica sempre aberta porque Rubens nunca será esquecido.
O filme não tem um grande momento dramático, uma grande apelação narrativa, um clímax. Ele segue como esse momento foi. Mesmo com um demorado atestado de óbito. Não é filmado como um momento de respiro ou resolução, é mais um alento aquela ferida que continua sempre aberta.
Ali no fim, nos dias de hoje, a vida continua. Mesmo em uma ausência que não permite esquecimento.
Ainda Estou Aqui
2024 Drama/Thriller
DIREÇÃO: Walter Salles
ROTEIRO: Murilo Hauser e Heitor Lorena
ELENCO: Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro.