ENTRE O ABSURDO E O COMUM
Crítica de Depois de Horas
por Felipe Vignoli
17.06.2024, 22h30
Como se controla o absurdo? Entender o lugar em que estamos e suas regras é uma das questões bases do convívio humano. Porém, quando nos vemos em meio ao desconhecido, ao não-crível, a própria ruptura da nossa realidade toma conta dos padrões que buscamos no espaço em que nos encontramos. Para Camus, o absurdo é a própria vida que, desprovida de sentido, faz com que o homem movido por esse vazio existencial busque encontrar algum sentido para viver; uma busca contínua de sentido.
É nesse absurdo em que Paul Hackett é jogado na noite em que se passa a narrativa do filme After Hours de 1985, dirigido por Martin Scorsese. O protagonista é um funcionário de uma empresa de Nova York no começo dos seus trinta anos de idade e que vive uma vida mundana. Processual. Marcada pela realidade comum. E ao se deparar com uma figura feminina encantadora e charmosa se vê em uma posição de desejo. A mulher, Marcy, o convida para ir para sua casa e o homem, cheio de expectativa vai.
É a partir desse momento em que Paul se desloca por completo de sua realidade. A mulher é moradora de SoHo, uma região na época pouco habitada e famosa pelo seu circuito de arte alternativa, e desde o caminho de táxi até a região tudo começa a desconectar-se do padrão que vive Paul. Uma nota de vinte dólares, seu único dinheiro, vai embora voando pela janela do táxi extremamente rápido e turbulento. Ali ele já fica despido do que controla seu mundo comum empresarial, o dinheiro. Sem aquilo ele é despejado no seu destino e se depara com as ruas vazias e soturnas da região. Kiki, uma amiga de Marcy, arremessa as chaves do apartamento pela varanda. A direção de Scorsese, que desde o primeiro plano do filme destaca uma urgência rítmica, se coloca nos pontos de vista de ambos Paul e a chave, objeto de destaque narrativo e temático. É desses movimentos rápidos e planos fechados que o diretor movimenta e controla a modulação de suas cenas. A estranheza e velocidade de um táxi pela rua à queda ríspida de uma chave.
A obra aponta uma realidade que funciona a partir de suas próprias regras, de seu próprio movimento e sempre funciona como tal, mas, para uma figura como Paul, completamente envolto na cultura tradicional empresarial, aquilo não parece fazer sentido e assim é levado ao próprio absurdo. Ele é o elo perdido dali. Ele que é o estrangeiro daquele espaço e então, a partir daqui começa a ser levado em um movimento contínuo de deslocamento próprio. Encontrando Kiki antes de Marcy que estava fora, Paul percebe-se novamente nesse lugar de desejo, essa figura, para ele até exótica, monta uma escultura mórbida de papel de jornal, "O Gemido" ele compara errando o nome da pintura em que pensou, claramente não tendo domínio do conhecimento artístico. Mas mesmo assim aquilo o assombra. O atrai. Tal qual Marcy. Tal qual Kiki, figuras locais daquele lugar. Ele faz uma massagem com cuidado enquanto seus rostos se aproximam, mas ela cai no sono. A primeira frustração surge.
Paul se torna uma figura envolta de frustrações incapaz de se conectar àquela realidade, ele sempre entra em combate ou recusa, até uma espécie de negação aquele lugar, assim quase durante todo o filme, correndo, fugindo. Marcy, porém parece outra pessoa, nada amigável, nada sedutora. E sai. Paul não faz parte do seu mundo mas ela se esforça um tempo depois para trazê-lo. Nada funciona, nem a tentativa de abordagem sexual de Paul, que por fim, percebe uma oportunidade e vai embora à francesa decepcionado com aquele universo estranho. Para ele é um pedaço da sua própria cidade que não faz sentido, não funciona do jeito que deveria, é absurdo. Nada mais dá certo. Seu dinheiro trocado não é o suficiente nem para ir embora.
É um filme também envolto por seu contexto, Scorsese ainda não era o grande diretor que conhecemos hoje, seu filme anterior "O Rei da Comédia" foi um enorme fracasso de bilheteria e crítica para a época e o diretor caiu em um lugar de grandes negações constantes, tendo o contrato para o seu próximo e ambicioso filme quebrado, perdendo sua oportunidade de concretizar seus desejos assim como Paul. Essa quebra de expectativa é constante na narrativa, uma possível noite de sexo parece interrompida. Uma passagem de metrô de retorno a casa que aumenta de preço. Uma boate que estava lotada agora está vazia. Vendo tudo pelo ponto de vista do protagonista o espaço por si só cada vez mais toma o corpo do absurdo, é a falta de controle daquilo que assombra Paul, ele seduz mas não recebe afeto em troca, sua própria masculinidade é posta em cheque.
Uma situação absurda atrás da outra se acumula. Sempre envolvido com alguma mulher desconhecida, ele acaba em seus respectivos apartamentos, percebendo uma possível possibilidade de desejo, mas acaba decepcionado. Esse coito interrompido constante é evidenciado visualmente por Scorsese em pontos chaves em que se destaca: uma mulher que tem ratoeiras envolta da cama tem uma ativada bem na hora em que as coisas esquentam com Paul, outra conta sobre como arrancou tudo do marido, e até mesmo um desenho na parede de um banheiro com um tubarão mordendo o pênis de um homem jogam isso na frente de Paul, constantemente castrado.
A narrativa urgente e claustrofóbica não diminui o ritmo e cada vez mais se aproxima de absurdismo kafkiano, Paul começa a ser perseguido pelos moradores da região por acharem que ele está roubando apartamentos, Kiki é encontrada morta, em uma boate alternativa tentar cortar seu cabelo em formato de moicano. Tudo o desconecta cada vez mais do seu padrão. Desde seu primeiro encontro com Kiki ele já é despido de seu terno e gravata clássico, de sua realidade empresarial, e jogado ali, naquele mundo que para ele parece completamente alienígena.
O desconforto toma lugar do conforto e a frustração reina naquele universo. E Scorsese nos leva junto em uma perspectiva agitada e assustada, tudo se confunde como um filme de mistério e suspense, a comédia vem do absurdo e para Paul ali tudo é comédia, irreal. Porém é muito pontual como aquilo hora nenhuma se mostra assumir de fato como algo fantasioso, aquela realidade só existe daquele jeito a partir daquele mesma perspectiva e assim só a partir dela se constrói essa estranheza e tensão. Essa estratégia, feita com precisão pelo diretor, coloca o espectador sempre no POV de Paul, sua visão de mundo, seu olhar, planos fechados e inserts, tudo como se não tivéssemos no macro dali. Só vemos o fechado, o micro.
Após horas de desespero e fugas, ele por fim se depara com uma última mulher, sozinha, na mesma boate de antes. Eles dançam lentamente, o ritmo lento. Ela lhe pergunta o que precisa e ele responde com a única resposta que é possível para ele naquele momento, despido de toda sua realidade, finalmente cedendo ao absurdo, não resistindo, ele percebe o que realmente quer. Naquele mundo como qualquer outro, seguindo suas próprias regras e caminhos, ele quer viver. Simples e diretamente. Ali percebe-se que sua realidade não é vida. Ali talvez sim tenha. Ele deita em seu colo. É interessante a conexão que o absurdo tem com a realidade, aquele espaço apresentado ao espectador por Scorsese pela perspectiva de Paul é completamente tomado por sua parcialidade empresarial, aquele lugar não responde às suas regras, às suas convenções. O absurdo é a própria vida que, desprovida de sentido, faz com que o homem movido por esse vazio existencial busque encontrar algum sentido para viver. Ele se movimenta por si só. Preso em um lugar de não movimento, porém aqui, vivo.
Despido de tudo, em uma última fuga da multidão, Paul é envolto em uma escultura de papel jornal como a do começo, se torna a arte, aquele mundo toma conta de seu corpo e então, disfarçado do que é absurdo, ele consegue ir embora. Somente para cair descascado de volta a sua rotina, ao seu espaço de conforto banal, sem vida. Ao seu escritório.
Depois de Horas
1985 Thriller/Drama/Comédia
DIREÇÃO: Martin Scorsese
ROTEIRO: Joseph Minion
ELENCO: Griffin Dunne, Rosana Arquette, Verna Bloom e Tommy Chong