E SE EU NÃO SOUBER DE MIM?
Crítica de I Saw The TV Glow
por Ieda Lagos
19.06.2024, 12h30
I Saw The TV Glow é um filme que ainda não teve lançamento no Brasil, é a segunda produção dirigida e escrita por Jane Schoenbrun, que lançou seu primeiro longa em 2021. Partindo de uma comparação entre as duas obras fica evidente que Schoenbrun utiliza uma base extremamente pessoal e íntima para idealizar e dirigir seus projetos, tratando da solidão, do descolamento e da relação com a ficção como forma de fuga.
Nesse segundo projeto a fuga pela ficção se torna não apenas premissa como uma possível chave para o protagonista Owen, interpretado por Justice Smith, que começa como um jovem entre seus doze anos que passa a se interessar por uma série de TV chamada "Rosa Opaco" depois de conhecer Maddy, uma menina mais velha que tem uma espécie de obsessão pelo programa. Durante o filme somos apresentados a quatro tempos da vida desse rapaz aos quais tanto a série, como Maddy, interferem de alguma forma, mesmo que pela ausência.
A primeira é a apresentação dessa relação entre os dois, e de Owen com a série. Três anos depois, quando sua mãe está morrendo de câncer, Owen passa a receber fitas gravadas com todos os episódios. Maddy conta que pretende fugir e sugere que Owen fuja com ela.
Em um terceiro momento Owen vive uma vida completamente comum, trabalhando em dois empregos, sem grandes perspectivas, quando Maddy reaparece contando uma história louca, ela fala que entendeu tudo e que na verdade ambos são as personagens da série "Rosa Opaco", ela explica que o Sr. Melancolia, o grande vilão, roubou o coração das duas garotas e as está enterrando aos poucos, ao mesmo tempo que nesse plano ilusório os dois vivem essa vida presos e sendo sufocados dia após dia em um corpo que não os pertence.
Novamente Owen foge, desacredita em Maddy e decide continuar vivendo sua vida ordinária, mesmo que pense sempre na possibilidade de ela estar certa. Até que o vemos com cinquenta anos, um homem estagnado no mesmo trabalho, curvado, ressecado, solitário. Owen parece finalmente sufocar, ele pede ajuda, mas ninguém o escuta, e eis a revelação quando o homem se olha no espelho e abre o peito, apenas para constatar que dentro existe algo brilhante. Mas ele o fecha e volta ao trabalho, ignorado por todos, perdendo o ar, escondido atrás de uma pele que não é sua.
Eu fiz questão de dar uma breve sinopse do filme pois acredito no potencial de elucidar tudo o que agora venho analisar.
Ao assistir ao filme fui atingida por uma nostalgia extrema, como se alguém houvesse visto pedaços de mim e transformado em cenas. Eu me lembro bem de não ser exatamente uma criança de brinquedos, por contingências da vida, acabei sendo uma criança mais solitária e passei muito tempo criando histórias e fingindo que fazia parte das narrativas que eu via, especialmente aquelas que lembravam de Alice no País das Maravilhas, histórias de meninas que caiam em poços ou entravam em túneis, só para descobrirem que do outro lado eram mais fortes e corajosas, e que em verdade existia uma espécie de magia dentro de cada uma das mesmas. Pois então eu brincava de ser uma, e grande foi a surpresa ao entender como subconscientemente essa narrativa era extremamente relacionada a crianças queers.
Em "I Saw the TV Glow" Owen se aproxima de Maddy com seus quinze anos perguntando sobre "Rosa Opaco", ela responde que é lésbica que se aquilo é uma forma de se aproximar por interesse não vai funcionar, mas Owen apenas responde que não sabe do que gosta, parece não ter interesse em ninguém.
Já mais velho, quando Maddy conta sua versão da história, Owen parece ter alguma memória de si mesmo correndo com um vestido rosa, e qual melhor analogia a uma pessoa trans que se tornar refém da melancolia preso em um corpo que não é seu?
Tudo nessa história gera tristeza, parece de alguma forma que o Sr. Melancolia consegue nos atingir para além da tela. Alguns podem achar a escolha estética tosca, ou os tempos monótonos, mas são nesses pontos que a originalidade e a capacidade do diretore de gerar reconhecimento reside, existe uma simplicidade nessas escolhas que fazem da narrativa a chave, e o cotidiano reconhecível e nostálgico para uma geração bem específica que cresceu com a televisão em um momento de ficções fantasiosas e muitas vezes toscas.
Eu peguei o final desse momento, e lembro do meu próprio encantamento com a série "Clube do Terror", com jovens que contavam histórias de terror em volta de uma fogueira e de certa forma o terror era também o mágico, a possibilidade do extraordinário viver em sincronia com o cotidiano, mas assim como na última crítica de "Os Observadores" de Ishana Shyamalan, existe um reflexão sobre o afastamento da sociedade com a magia, o amadurecimento vai minando ainda mais a possibilidade de buscar esse extraordinário, e isso não é diferente com o protagonista desse filme, por mais que ele as vezes queira que aquilo seja verdade, quanto mais o tempo passa mais ele se esquece da possibilidade de algo mágico acontecer.
De certa forma, depois que o filme passa eu fico feliz por saber que Schoenbrun encontrou o caminho de volta, recuperou seu coração e seu corpo para si, mas ainda assim melancólica pelo personagem que em alguma dimensão existe em eterno sufocamento, Owen não pôde ser salvo, acreditar nesse plano mágico onde ele era de fato "ela", forte, corajosa e capaz de muito mais foi desacreditado em detrimento de um sistema de subúrbio norte-americano sufocante e infeliz.
No cinema o fantástico pode existir de fato, é apenas uma escolha narrativa, e muito me agrada a forma com que esse mundo fantástico existe em um universo paralelo, sendo acreditado pelo próprio autor do filme, por mais difícil que seja esse acreditar para alguns espectadores, para outros é ainda mais difícil ver que Owen não acredita, e que por fim, não saiba de si mesmo.
I Saw The TV Glow
2024 Terror/Drama
DIREÇÃO: Jane Schoenbrun
ROTEIRO: Jane Schoenbrun
ELENCO: Justice Smith, Brigette Lundy-Paine, Ian Foreman, Helena Howard